Precisamos mudar o que aprendemos sobre o erro. O Design nos ensina que erro é uma oportunidade de melhoria, não um obstáculo no processo. O nosso designer Gabriel Guimarães (Guima) tem uma excelente reflexão sobre o tema. Acompanhe:
“No dia seguinte ninguém morreu.”
É com essa curiosa frase que José Saramago inicia sua belíssima obra, As intermitências da morte, publicada em 2005. Ele, primeiro autor de língua portuguesa laureado pelo Nobel em Literatura, conta a história de um país fictício em que as pessoas, a partir do primeiro dia do ano, independentemente da condição de saúde, não morrem.
Simples assim, a partir do dia primeiro de janeiro, ninguém morre. Ninguém mesmo. Pessoas acamadas em suas casas, pessoas doentes terminais nos hospitais, pessoas acidentadas gravemente, todas elas, que deveriam seguir o curso natural da vida, permaneciam vivas.
Agora, gostaria de propor um pequeno exercício e conto com sua colaboração.
E se trocássemos o verbo “morreu” pelo verbo “errou”?
Ao invés da frase “No dia seguinte ninguém morreu”, teríamos:
“No dia seguinte ninguém errou.”
Faz esse esforço comigo. Faz muito sentido, já que nós, como seres humanos, regra geral, tememos tanto a morte quanto o erro. E, convenhamos, morrer e #errar são fatos inevitáveis da vida humana.
Já dizia Saramago, na mesma obra:
"(...) porque morrer é, afinal de contas, o que há de mais normal e corrente na vida, facto de pura rotina (...)."
Pessoalmente, eu concordo com ele e acrescentaria o erro como o que há de mais normal na vida.
É importante dizer, desde já, que José Saramago insistiu que fosse mantida a ortografia vigente em Portugal. Então, assim como “facto” no parágrafo anterior, podem aparecer mais algumas palavras que nos causem estranhamento.
Vamos lá?
“No dia seguinte ninguém errou.”
Já imaginou viver em um país em que não houvesse #erro?
Eu fiz esse exercício ao ler “As intermitências da morte”, principalmente ao pensar no erro do ponto de vista das #organizações.
Na organização que você orgulhosamente estampa em seu perfil no LinkedIn, como o erro é tratado? O que aconteceu na última vez que você errou? E quando um colega errou? O erro é a “morte”?
Consigo sentir você concordando comigo que muitas organizações, e muitas #lideranças, gostariam de existir nesse país fictício, em que o erro deixou de existir. Imagina que fantástico seria todas as pessoas acertando todas (eu disse todas!) as suas ações, certo?
Errado!
Prefiro pensar nas incontáveis oportunidades de #aprendizado, de #crescimento, de #evolução, de #inovação, de expansão da consciência que os erros proporcionam nas organizações. Oportunidades que deixariam existir caso o erro também não estivesse presente.
Na minha opinião, viveríamos em um país fictício muito desagradável, repetitivo, insosso, isso sim.
Errar é humano!
Alex Bretas, autor e palestrante sobre aprendizagem autodirigida, traz no texto “12 razões para errar e valorizar os erros que cometemos, todos os dias, em nossas vidas” que errar é humano.
Para ele, cometer um erro é a maneira mais fácil, e ao mesmo tempo mais contundente, de chamar a atenção para nossa impermanência, incompletude e imperfeição. É um lembrete de #humanidade.
Ao aceitar esse estado de #imperfeição, a ação, ou seja, o ato de fazer, nos coloca em movimento, dando a oportunidade de errar, #aprender com os erros e buscar implementar #mudanças para buscar o que seria o certo.
Quando falo sobre “estado de imperfeição”, automaticamente, me lembro deste trecho da música “Errar é humano”, do Toquinho:
“A vida irá, você vai ver Aos poucos te ensinando Que o certo você vai saber Errando, errando, errando Não, não é vergonha, não Diferenças nunca são defeitos, não existe a perfeição"
Toquinho foi muito feliz ao dizer que “não existe a perfeição”. Acredito muito que, se traçarmos uma linha contínua com os extremos #imperfeição e #perfeição, a perfeição seria um lugar inabitável, fictício, assim como nosso país em que não existe erro.
O que nos resta, como seres humanos, é aceitar o estado de imperfeição para aprender e evoluir com nossos erros.
A segurança psicológica como base
O Projeto Aristóteles foi um estudo realizado pelo Google ao longo de dois anos, a partir de 2012, para entender os fatores que tornavam algumas de suas próprias equipes altamente produtivas.
Para Julia Rozovsky, uma das lideranças do projeto, a conclusão do estudo revelou que o nível de segurança psicológica era o fator mais importante das equipes de sucesso. Confiabilidade, estrutura e clareza, significado e impacto, outros fatores citados, também eram importantes, mas a segurança psicológica da equipe era quatro vezes mais significativa na formação de um time altamente produtivo.
Mas afinal, o que é segurança psicológica?
AMY C. Edmondson, professora de liderança e administração na Harvard Business School, é conhecida por seu trabalho pioneiro em segurança psicológica, que nos últimos 15 anos ajudou a gerar um grande número de pesquisas acadêmicas em administração e saúde.
Para a professora, segurança psicológica:
“é a crença compartilhada pelos membros da equipe de que a equipe é um ambiente seguro para se tomar riscos interpessoais”.
Ou seja, podemos definir segurança psicológica como o ato de gerar um ambiente de trabalho em que as pessoas se sintam confortáveis e seguras para serem elas mesmas. Assim, elas terão confiança para expressar suas ideias e visões com naturalidade.
Amy Edmondson, em seu livro “Teaming”, escreveu:
“Em ambientes psicologicamente seguros, as pessoas acreditam que, se elas cometerem um erro, os outros não vão puni-las ou pensar mal delas por isso. (...) Assim, a segurança psicológica é uma convicção dada como certa de como os outros responderão quando você fizer uma pergunta, pedir feedback, admitir um erro ou propuser uma ideia possivelmente maluca.”
A segurança psicológica, portanto, não é um fim em si mesmo. Na verdade, é a base fundamental que permite o aprendizado.
O erro como aprendizado experiencial
Quem acompanha o futebol brasileiro com certeza já ouviu falar de Fernando Diniz, atualmente treinador do Fluminense Football Club.
Caso você não tenha a mínima ideia do que estou falando (ou escrevendo?!), darei o contexto necessário, não se preocupe.
O treinador tem um estilo de jogo muito peculiar, implementado em todos os times pelos quais passou, de verdadeira obsessão pela posse da bola. O time inteiro deve manter a posse da bola a todo custo, sem entregá-la facilmente para o adversário, começando pelo goleiro.
O goleiro, tradicionalmente, é aquele jogador que não tem obrigação de jogar com os pés, e que treina exaustivamente para defender com as mãos.
Existem algumas exceções no mundo dos treinadores, mas nenhum deles é tão ousado quanto Fernando Diniz. Com ele, invertendo a ordem, os goleiros treinam exaustivamente para jogar com os pés, participando de toda a construção do jogo.
É aí que entra o Fábio, atualmente goleiro titular do Fluminense. Aos 42 anos, idade considerada muito avançada para um jogador de futebol, Fábio vem treinando muito para jogar com os pés.
Acontece que, em um jogo muito disputado, ele acabou errando e seu erro gerou o gol do time adversário.
O que seu treinador disse após o jogo?
“O Fábio errou? Sim. Mas erro não é fracasso. Erro é erro. Esse erro vai fazer o Fábio melhor, o Fluminense melhor. (...) A gente vai ficar no senso comum, fazer sempre as mesmas coisas e não pode reclamar. O que aconteceu, a gente não quer que aconteça. Só tem uma coisa a fazer, ou você desiste, ou melhora. Aqui a gente vai melhorar para que demore a acontecer da próxima vez. (...) Comigo tem acolhimento total. Senão dá impressão que não pode errar.”
Particularmente, sou fã de entrevistas de treinadores, de qualquer esporte de alto rendimento. São verdadeiras aulas de liderança. Algumas vezes tem lições do que não fazer, mas continuam sendo aulas.
E essa entrevista do Fernando Diniz tem uma frase fundamental: “Comigo tem #acolhimento total.”
Acolhimento é a segurança psicológica para que o processo de aprendizagem se beneficie dos erros cometidos ao longo da #jornada.
Sabe o que aconteceu no jogo seguinte?
Fábio foi chamado de “gênio do gol”, ao iniciar, com os pés, a jogada de um dos gols no jogo que terminou com vitória do seu time.
Veja nas próprias palavras de Fernando Diniz:
“O Fábio, na minha opinião, é um gênio do gol. Por isso, ele consegue jogar com a idade que ele tem. Um cara com 42 anos jogar e se predispor a aprender a jogar com o pé, treinar mais do que os outros. Ele joga com uma naturalidade incrível hoje. Parece que o Fábio nasceu jogando com o pé. Ele é um gênio mesmo, talentoso demais, ele é espetacular. Com talento natural e o resto é esforço. Que ele não tinha tanta condição com o pé, que foi pouco estimulado ao longo da carreira dele e, em um ano, o que ele evoluiu é uma enormidade. É uma coisa surpreendente”.
É isso! Intencionalidade para aprender, para estar disposto a encarar os erros do processo, que com certeza vão gerar evolução.
E Fernando Diniz foi além:
“(O mais importante) É falar sobre a possibilidade que as pessoas têm de errar. Uma hora dá errado, mas é uma coisa muito bem treinada. E muitas e muitas vezes, em muitos lugares onde passei, isso é uma marca constante do meu trabalho de sair jogando. E as pessoas ficaram, por muito tempo, esperando acontecer um erro para ficar fazendo crítica. E eu segui a minha vida, nada disso me abalou. (...) Não existem coisas melhores se não arriscar, fazer algo diferente”.
Percebam a potência das palavras: "o mais importante é falar sobre a possibilidade que as pessoas têm de errar". Fernando Diniz deu uma lição valiosíssima sobre segurança psicológica no processo de aprendizado experiencial.
O erro como porta para o futuro emergente
Para Otto Scharmer, autor do livro “O Essencial da Teoria U”, existem duas fontes diferentes de aprendizado. A primeira é aprender refletindo sobre o passado. Essencialmente, é exatamente o que já conversamos até aqui: olhar para os erros cometidos e gerar aprendizados para evoluir.
Acontece que aprender refletindo sobre o passado é o comportamento mais comum nas organizações, historicamente. Nas palavras do autor:
“Às vezes, experiências passadas não são particularmente úteis. Às vezes, as experiências passadas são os próprios obstáculos que impedem uma equipe de encarar uma situação com novos olhos.”
É exatamente nos obstáculos que entra a segunda fonte de aprendizado, aquela que envolve o fato de aprender com o #futuro à medida que ele emerge, sentido o que está acontecendo no presente.
“Todos os desafios disruptivos exigem que avancemos mais. Eles exigem que desaceleremos, paremos, sintamos as maiores forças motrizes da mudança, deixemos o passado para trás e permitamos vir o futuro que deseja emergir.”
Não é algo fácil de se fazer no automático. É preciso, acima de tudo, estar presente e sentir quais possibilidades futuras estão emergindo como possibilidade.
É o que diz C. Otto Scharmer, ao trazer o conceito de “presenciamento”. Em inglês, a palavra presencing combina presence (#presença) e sensing (#sentir).
E vou além: é preciso, ainda, #intencionalidade para sair do modo automático, reativo, para se colocar nesse estado de presença e sentimento.
Aliás, se eu pudesse escolher uma palavra para meu momento pessoal de vida, com certeza seria intencionalidade. Que força que ela tem! Olhe para este significado, que vem da Psicologia, e veja se concorda comigo:
“Intencionalidade: caráter de um estado de consciência adaptado àquilo que se procura alcançar, conscientemente.”
Potente, não é mesmo?!
Quer saber como isso acontece na prática? Tenho um exemplo incrível aqui, de uma possibilidade futura que emerge a partir de um erro.
Osteria Francescana é um restaurante premiadíssimo em Modena, na Itália - com 3 estrelas Michelin, inclusive.
O restaurante pertence ao Chef Massimo Bottura, que revolucionou a tradicional e já deliciosa gastronomia italiana com seu trabalho impecável e inspirador.
Ao assistir ao episódio que fala de Massimo Bottura na séria Chef’s Table, produzida pela Netflix, me deparei com um caso muito curioso sobre o erro.
Um dia, Massimo Bottura e Taka (Takahiko Kond, o sous-chef do restaurante) iriam servir as duas últimas "Tortas de Limão", já ao final do expediente. De repente, Taka derrubou uma das tortas, bem no momento em que seria servida.
A torta estava caída, metade no balcão, metade no prato. E lembre-se, eram as duas últimas. A princípio, não havia outra alternativa. Taka, naturalmente, ficou muito nervoso com o erro, mas Bottura, após um longo silêncio sepulcral, ao reenquadrar a visão através de seus dedos, formando uma moldura, disse:
“Taka, pare com isso e veja através dos meus dedos. Isso é lindo! Vamos reconstruir como uma coisa quebrada.”
Foi nesse momento que eles criaram a nova sobremesa, chamada criativamente de “Oops! Derrubei a Torta de Limão”, que, veja só, se tornou o prato mais solicitado do cardápio do restaurante Osteria Francescana, com fila de espera de 6 meses para reservas - se estiver planejando uma viagem para a Itália e quiser provar a sobremesa, é preciso se planejar com bastante antecedência, hein?!
Esse é um exemplo inspirador de como o erro, na mais pura e ingênua acepção do termo, em que uma simples distração - a famosa desatenção - ao final de um dia intenso de trabalho, encontra um olhar presente e intencional para sentir que, sim, há beleza no erro e que dele poderá emergir futuros transformadores.
O erro vai acontecer, confia!
Vimos, ao longo do texto, que errar, característica intrínseca do ser humano, requer segurança psicológica como base fundamental e, a partir disso, tem potencial de gerar aprendizado experiencial ou possibilidades emergentes de futuros transformadores.
Por mais que o erro seja evitado, é fundamental ter em mente que ele vai acontecer. Querendo você ou não, o erro já faz parte da rotina de todos nós, seres humanos.
Ah, e caso você ainda tenha convicção de que não erra, ou que não errou hoje (o que eu duvido convictamente!), lembre-se das palavras de Saramago:
"Momentos de fraqueza na vida qualquer um os poderá ter, e, se hoje passámos sem eles, tenhamo-los por certos amanhã."
Por isso, quando acontecer, olhe atentamente para o erro, abrace-o com presença e sentimento e, acima de tudo, aprenda e evolua com ele.
Todos os dias, intencionalmente.
Comments