#01 - Provocações | Ensaio
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Provocações

A GENTE

NÃO CONTROLA TUDO

Pedro Piovan

17 de outubro de 2020

Image by Xavi Cabrera

Precisamos deixar a certeza de lado e se abrir para a serendipidade

O início da música do Emicida chamada “Cananéia, Iguape e Ilha Comprida” não sai da minha cabeça ao escrever este texto. No início da música podemos ouvir a filha do Emicida tocando um chocalho e logo a intervenção do próprio: “não, chocalho tem que ser tocado com vontade, tendeu? Só que sem risadinha, certo? Sem risadinha, porque aqui é o rap, mano, onde o povo é brabo, entendeu? O povo é mau! Mau! Mau! Pra trabalhar nesse emprego de rapper você tem que ser mau! Hã, tendeu? Sem risadinha, OK?”. Sua filha morre de rir com o palavreado rígido e autoritário do pai, fazendo qualquer pessoa derreter com toda aquela risada. E o Emicida continua: “Será que o Brown passa por isso? Ou o Djonga? Ou o Rael? Sei lá, meu, Aqui os cara é mau!”.

Essa entrada da música é uma obra de arte por si só; Emicida, com toda a sensibilidade que tem, começa a reconstruir o estigma criado em cima do rap e do rapper em si. Toda aquela carcaça rígida, dura, “má”, que não pode rir ou “faiá”, se desfaz na frente do riso de uma criança.

Me pergunto o quanto isso não representa um chamado, uma tendência que todos nós temos que mergulhar. Não apenas o rapper, mas o estigma profissional e para viver em sociedade que criamos para nós. O quão comum é a exigência da rigidez, firmeza e compostura e o quanto isso não nos faz mal? O quanto essa figura afirmativa, sempre com respostas certas que somos imbuídos a viver, afeta a forma como nos relacionamos? Será que não há alternativa no lugar de toda essa rigidez?

Eu acho que há. E a dica quente que o Emicida traz é exatamente essa: a alternativa esta em rir do que toda essa bravura significa.

QUEBRANDO A RIGIDEZ

Vivemos em um momento no qual percebemos que o modus operandi do ser rígido, dominante e agressivo não cabe mais em nosso tecido social. Isso é explícito no momento que não temos respostas para as demandas da espécie humana: não soubemos consolidar uma resposta a misoginia, racismo estrutural, crises econômicas e distribuição de renda. Todas as vezes que tentamos entregar respostas certas a essas demandas, vestidos em nossas armaduras rígidas, simplesmente falhamos. 

Não é que essas respostas não existam; mas para que a gente alcance-as, precisamos da risada da criança para desestruturar este estigma e acessar essa resposta por outros caminhos.

Repare que não digo “rir” no sentido de ironizar essas questões, pelo contrário: a risada é um artifício para quebrar toda essa rigidez que simplesmente não cabe mais; precisamos desconstruí-la para voltar a dialogar, costurar ideias diferentes sob outros patamares.

A criança quando ri de toda essa rigidez desnecessária, rompe com todos os fundamentos que estruturam esse estigma de sempre ter uma resposta; enquanto continuamos no nosso teatro que todos devem ser firmes e não mostrar suas vulnerabilidades, as crianças estão nos ensinando a viver o mundo de uma forma mais liberta desta força arquetípica que tanto nos assola.

Enquanto todos nós queremos estar sempre com respostas certas, as crianças se abrem para a serendipidade da vida. E é aqui que eu começo de fato meu argumento: se a gente não aprender a viver com a serendipidade que as crianças nos propõe, vamos continuar em um mundo entediante que não consegue responder as nossas demandas sociais e individuais.

SERENDIPIDADE COMO RESPOSTA

As crianças estão aptas a viver em uma realidade da qual elas vivem apenas aquele momento com aquelas condições desenhadas; não necessariamente almejam mais, nem menos - elas brincam com o que esta ali disponível. Observe uma criança olhando o céu; enquanto nós adultos ficamos querendo medir exatamente a temperatura, elas conseguem olhar dinossauros, cidades, símbolos todos se relacionando ali ao mesmo tempo.

Diferente de nós que tudo queremos trazer o raciocínio crítico, as crianças estão abertas a conexões diferentes o tempo todo; elas estão abertas ao acaso. Já dizia Vinicius de Moraes (recentemente citado pelo Papa, inclusive): “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.

Ser criança é estar apto a possibilidade fortuita de se gerar encontros ao mesmo tempo que geramos desencontros; é a arte de conseguir conectar pontas que jamais seriam conectadas pelo campo da razão. Ser criança é um ode a possibilidade da ignorância te trazer glória.

Pensando bem, a real capacidade de inovação não esta apenas na técnica, mas sim na capacidade de deixar a serendipidade acontecer; é de não necessariamente inovar porque ligamos os pontos corretos, mas sim porque deixamos quaisquer pontos se conectarem até que exista algo que entrega sentido.

As crianças tem muito a nos ensinar: nós, adultos, perdemos a capacidade de deixar a serendipidade acontecer pela necessidade de controlar tudo o que for possível. Pois bem, chegamos a um ponto que o excesso de controle gera depressão e ansiedade; e agora?

COMO PERMITIR O FORTUITO

NOS SURPREENDER

Talvez seja o momento de desacelerar; talvez seja o momento de deixarmos a serendipidade da brincadeira nos mostrar qual é o melhor caminho que podemos seguir. 

 

E olha que não digo isso da minha cabeça apenas, mas essa força que evoco aqui é tão importante que é inclusive cultuada em diversas tradições como divindades: de Ibeji até Krishna e Nezha, são divindades que nos ensinam a nunca esquecer que ser criança é sempre ter a capacidade de deixar as coisas fluírem como se fosse a primeira vez, independente o quão “experiente” ou o quanto já viu aquilo acontecer.

Ser criança é a capacidade de olhar as coisas sempre com um aspecto revigorado, buscando enxergar algo diferente. Afinal, os adultos sempre são cheios de opinião e certezas (e inclusive sempre quebram a cara com suas certezas). 

 

De fato, conseguir ser criança neste mundo é uma chave importante para escapar de todas as traquinagens que existem em nossos caminhos como desafios. Até porque, se temos um desafio, isso significa que nosso repertório não dá conta de trazer uma resposta; então temos que buscar respostas com outras conexões. 

 

Uma sugestão que aprendi ouvindo essa música do Emicida: sempre quando você tiver que ter uma postura rígida, durona e “má”, como o Emicida brinca com sua filha, sugiro você não incorporar esse arquétipo, mas sim ir para o lado da filha dele: dê risada dessa figura, deixe ela se desmoronar sozinha no tom da risada que você der; talvez assim, sobra espaço para você respirar e conseguir pensar em alguma outra solução que nunca tinha pensado.

 

Afinal, desafios em nossa caminhada é o que não faltam. O que realmente esta em falta são olhares mais amplos, permissivos a diversidade e aptos a uma construção menos crítica e mais construtiva.

Temos algumas dicas para te dar no próximo Pico.

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